Mais de dez mil mortos devido aos bombardeios de Israel na faixa de Gaza, segundo organizações independentes. Grande parte deles é de crianças. “Este é um direito de defesa de Israel diante dos ataques terroristas do Hamas em 7 de outubro” dizem os governos que já têm uma posição clara diante do conflito. Alardeiam que estão escudados no Direito Internacional. A princípio, longe de mim esquecer os mortos e os reféns feitos pelo Hamas. O sofrimento humano é humano em qualquer ser humano! Aqui no Brasil, no entanto, temos grupos que, a partir de pressupostos religiosos, tomam um claro partido nesta guerra em que vingança se transmuta em justiça.
São os evangélicos, um mundo diverso e plural, com muitas as variantes históricas e teológicas, mas que têm assumido um lugar público cada vez mais evidente, de teor obviamente político porque se propõe a um projeto de poder na sociedade. Domingo passado, pela manhã, chamou-me a atenção uma manifestação de um desses grupos na Praça XV, em Ribeirão Preto. Utilizando um carro de som bem estridente, chamava a atenção de quem passava por ali. Liderados por um pastor, sucederam-se discursos de evangélicos e representantes de organizações judaicas em defesa do Estado de Israel.
Insensatez e incoerência
O apoio dos evangélicos a Israel, embalado por uma interpretação literalista das escrituras, transparece insensatez e incoerência. Enquanto a Bíblia clama por misericórdia e fraternidade, esses mesmos grupos endossam políticas de guerra. Ignoram a ironia de sua postura diante de um conflito que seus sermões deveriam aspirar a pacificar. “E embora seu fervor pareça impregnado de significado espiritual, na prática geopolítica, seu peso é absolutamente irrelevante, talvez valorizado apenas pelo lucro que geram através do turismo religioso que praticam na Terra Santa”, alerta Liniker Xavier, jornalista, teólogo e doutor em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco.
Antes de tudo, trata-se de um flagrante paradoxo: os evangélicos, seguidores de um Deus que atende pelo nome de “Príncipe da Paz”, encontram-se alinhados com políticas que, muitas vezes, resultam em violência e guerra. Não é apenas um apoio passivo. É um endosso ativo e barulhento de uma agenda política que não considera a dignidade e os direitos do povo palestino. Exatamente como vi na Praça XV, no último domingo. Além disso, há tempos, venho observando que, na maioria dos cultos evangélicos, as leituras do Novo Testamento são cada vez mais raras. Há uma clara tendência judaizante em muitas igrejas, uma aberta descristianização do seu ethos, seu modo de ser, e da sua mensagem.
Estamos próximos do Armagedom!
Mas de onde vem tamanha aberração? Existe alguma base bíblica ou teológica para tal insensatez? Para boa parte desses grupos, o Israel de hoje é uma espécie de “sinal divino” para os cristãos. A partir do final do século XVIII, um período de crises diversas deu origem a correntes evangélicas voltadas para a interpretação de profecias e previsões sobre o Apocalipse. Acreditam que, antes do fim do mundo, Deus faria com que o seu povo voltasse para a Terra Prometida. A criação do Estado de Israel em 1948 é entendida por essas correntes como sinal de que o fim do mundo estaria próximo, ou seja, a relógio do Apocalipse teria sido disparado e seria necessário prestar muita atenção no que acontece no Oriente Médio.
Essas correntes entendem que essa região é uma espécie de campo de batalha do fim do mundo. Ela localiza o evento bem próximo de Jerusalém, onde haverá o grande Armagedom, a batalha final entre a luz e as trevas, entre Deus e seus anjos por um lado, e o Diabo e seus demônios por outro lado. Essa corrente teológica é parte de uma teoria chamada “Dispensacionalismo” e é muito popular – ela é difundida principalmente entre evangélicos pentecostais e neopentecostais. Enfim, tomara que essas teologias absurdas sigam para a lata de lixo da história, e palestinos e israelenses possam viver em Paz!
A fé a serviço da guerra!
A retórica de guerra, vestida de teologia, é tanto imprudente quanto irresponsável. A fé evangélica, ao adotar uma postura beligerante, está não apenas se desviando de seu fundamento de amor e redenção, mas também contribuindo para a defesa de outro fundamento que legitima a perpetuação de um conflito sangrento. A situação exige uma reflexão crítica, um exame de consciência sobre como a fé cristã tem sido manipulada desavergonhadamente para servir a interesses políticos que estão em desacordo com os ensinamentos fundamentais do Evangelho de Jesus de Nazaré. Afinal, é preciso dar um basta a essa teologia rasa de pastores midiáticos!
(O jornal TRIBUNA também publicou este artigo na sua edição do dia 11 de novembro de 2023)
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